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Contagem regressiva

Por Didier Saint-Georges*

Quase uma década de intervenções nada convencionais dos bancos centrais nos mercados financeiros fez o racional parecer sensato. Investidores não precisavam mais se preocupar com o ciclo de negócios, a inflação, a cotação da bolsa, nem mesmo com a concentração de risco, visto que, em última instância, o que determinava o preço dos ativos financeiros eram as compras de títulos da dívida pública por parte das autoridades monetárias. As políticas cuidadosamente programadas e implementadas por diversos bancos centrais para comprimir as taxas de juros anulavam a volatilidade do mercado. Elas também acabaram provocando um efeito de esvaziamento que mantinha margens de crédito ajustadas e a tranquilidade nas bolsas de valores. Da mesma forma, houve pouca preocupação sobre o quanto os efeitos do ajuste fiscal imposto aos governos após a crise financeira de 2008 seriam capazes de distorcer a distribuição de ganhos e riquezas entre detentores do capital e profissionais assalariados. Esta lacuna crescente tem sido, sem dúvida, um dos principais motivos de revolta política nos dois lados do Atlântico nestes últimos dois anos. Movimentos contrários à ordem do livre mercado agora pressionam os governos para que abrandem o ajuste fiscal e mostrem maior generosidade nos gastos.

O desafio político à disciplina da União Europeia (UE)  imposto pelos partidos anti-establishment na Itália também pode ser visto como um dos efeitos da mentalidade “América em primeiro lugar” no continente. O fenômeno italiano já gerou um significativo nível de estresse no mercado financeiro. Após se amontoar de forma quase unânime ao redor dos riscos “patrocinados” pelos bancos centrais, os investidores agora parecem se encontrar em um terreno bastante pantanoso. No momento, no entanto, a economia global continua crescendo a um ritmo decente, as receitas corporativas continuam invejavelmente altas e os bancos centrais continuam se atendo às suas políticas mais conciliadoras. Juntos, todos esses fatores constituem uma rede de segurança tranquilizadora para os investidores. Mas assim que o suporte desta política macroeconômica e monetária começar a ruir, os mercados financeiros ficarão sujeitos aos testes de estresse da vida real, os mesmos que afetarão, aliás, os estilos mais ativos de gestão financeira. Com isso, já são observáveis tanto sinais de fragilidade no crescimento econômico como de intranquilidade crescente entre os bancos centrais. Isto quer dizer que a contagem regressiva já começou.

Os problemas na Itália são sintomas de uma vulnerabilidade mais ampla na zona do euro”

Desta vez não é diferente

Os principais indicadores econômicos publicados em maio substanciam a nossa opinião de que uma desaceleração global se aproxima, como explicamos na Nota da Carmignac do mês passado, “Sob a fúria, o ciclo econômico”. Apesar da reforma tributária do governo Trump, o investimento de capital ainda não ganhou força nos Estados Unidos e o consumo vem avançando a um ritmo lento. Na zona do euro, embora os indicadores econômicos ainda mantenham seus níveis elevados, houve uma clara queda no ímpeto dos últimos dois meses. O mesmo vale para o Japão.

E, desta vez, nossa insistência em afirmar que o ciclo de negócios em breve sofrerá uma reversão é corroborada por sintomas convencionais pouco vistos em quase uma década de distorção do mercado provocada pela política monetária. Além do desempenho muito abaixo do esperado de empresas altamente endividadas, cíclicas e industriais desde o início do ano, também tem sido possível observar a primeira pressão inflacionária sobre os preços, levando os economistas internacionais (dos Estados Unidos principalmente) a elevarem as suas expectativas sobre a inflação e as taxas de rentabilidade das obrigações.

Tio Sam rebelde

O atual governo dos Estados Unidos tem agido com certo descaso em relação a práticas bem estabelecidas de comércio internacional e geopolíticas. As metas de despesa fiscal do presidente Trump inevitavelmente exigirão que o governo federal adquira empréstimos consideráveis, justo agora que a Reserva Federal decidiu desacelerar e reduzir o seu balanço patrimonial em vez de inchá-lo com a compra de títulos do tesouro norte-americano, como fez de 2009 a 2015. A lamentável conjunção dessas duas decisões políticas certamente contribuíra significativamente para a alta das taxas de rentabilidade dos EUA.

Enquanto isso, no outro lado do Atlântico, o Banco Central Europeu continua comprando grandes quantidades de títulos da dívida pública europeia, mesmo com a melhora da economia. Outro ponto essencial é que os países da zona do euro continuam se atendo às suas políticas virtuosas de redução do déficit. Consequentemente, os rendimentos dos títulos públicos a 10 anos da Alemanha ficaram até 2,5 pontos percentuais abaixo dos títulos similares nos EUA e, até os recentes eventos bombásticos da política italiana, as taxas de rentabilidade vinham demonstrando uma notável convergência em todo o bloco europeu.

A virtude sob pressão

A eleição presidencial dos EUA e o referendo do Brexit no Reino Unido despertaram temores sobre o futuro da zona do euro em 2016, mas a vitória de Emmanuel Macron nas eleições francesas de 2017 estancou as forças centrífugas em ação no bloco europeu. Eleito com um programa de reforma tanto para a economia francesa como para a administração do bloco, o novo presidente parecia oferecer, no momento certo, uma alternativa confiável para o perigoso retorno ao passado que se delineava.

Um ano depois, nenhum partido na Europa, por mais fervoroso que se mostre a respeito da soberania de seu país, promove explicitamente o abandono do euro, e os obstáculos encontrados pelos britânicos nas mesas de negociação do Brexit não têm sido muito encorajadores para as pretensões secessionistas de outros países. Além disso, toda a zona do euro vem demonstrando um crescimento econômico saudável. Mas as brasas da ruptura ainda ardem. Por todo o continente a opinião pública se mantém dividida. Muitos cidadãos ainda se mostram receptivos à ruptura com as políticas de austeridade fiscal, não apenas porque são favoráveis a uma distribuição mais justa da riqueza nacional, mas também porque se uniram ao credo cada vez mais popular do “meu país em primeiro lugar”.

Retomada econômica oculta persistente vulnerabilidade estrutural da zona do euro

“O bloco europeu ainda está longe de chegar a um acordo sobre a introdução ou não de um orçamento comum capaz de dar aos países maior margem de manobra para as suas políticas fiscais na próxima recessão”

As fontes de tensão são particularmente palpáveis na Itália. Não só o país sofre de uma instabilidade política crônica, como também não consegue se libertar de um persistente calcanhar de Aquiles econômico: a preponderância de pequenos negócios que, embora frequentemente sejam muito dinâmicos, têm pouca capacidade de investir em novas tecnologias e alcançar maior produtividade. O investimento de capitais, ainda mais inibido por uma pesada regulamentação e um rígido regime tributário, mostrou-se insuficiente nos últimos 20 anos, o que resultou em uma taxa inferior de rendimentos atualmente disponíveis no país na comparação com o período pré-crise, enquanto a desigualdade de renda persiste com níveis elevados.

Os problemas na Itália são sintomas de uma vulnerabilidade mais ampla na zona do euro. Com a ajuda de um banco central altamente protetor e, mais recentemente, de uma economia próspera, algumas reformas estruturais foram reconhecidamente aplicadas: primeiro na Itália, em 2011, e muito mais recentemente na França. Mas as reformas ainda precisam recuperar a competitividade desses países ou levar a uma redução significativa da dívida nacional. A margem de manobra fiscal desses governos permanece, portanto, bastante limitada e se mostraria terrivelmente inadequada diante de uma recessão econômica. Qualquer aumento na despesa do governo para revigorar uma economia em desaceleração seria interpretado pelos mercados financeiros como um preocupante declínio da solvibilidade.

De certa forma, os acontecimentos recentes na Itália trouxeram à tona um risco crucial: os investidores poderiam passar rapidamente a tratar títulos soberanos de países da periferia da zona do euro como tratam os títulos corporativos, usando análises de crédito para determinar o nível de rendimento que desejam. A vulnerabilidade só aumenta com o fato de que a União Europeia também não obteve progressos em sua reforma institucional. A zona do euro ainda está longe de chegar a um acordo sobre a introdução ou não de um orçamento comum capaz de dar aos países maior margem de manobra para as suas políticas fiscais, caso seja necessário um controle da despesa orçamentária. Isso quer dizer que haveria poucos meios aos quais os autores de políticas monetárias poderiam recorrer em busca de estabilidade para resistir a uma eventual recessão econômica na Europa em um futuro próximo. Assim, o processo de convergência dos últimos anos poderia em breve enfrentar realidades econômicas mais ríspidas.

Os próximos meses, portanto, serão cruciais para a alocação de ativos. Fazia muitos anos que  decisões macroeconômicas certas não se mostravam tão importantes para os gerentes de fundos ativos.

* Didier Saint-Georges é diretor executivo e membro do comitê de investimento da Carmignac

Fonte: Bloomberg, Carmignac, 31/5/2018

Relatório concluído em 4 de junho de 2018

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